A grande mentira do “crime migrante” nas eleições norte-americanas

Fonte original disponível no Latinoamérica21

Autora Karina Quintanilha – Advogada especializada em migração e refúgio, doutora em Sociologia pela UNICAMP e bolsista Print-Capes pela Università Ca’Foscari di Venezia (Itália). É pesquisadora colaboradora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e cofundadora do Fórum Internacional Fronteiras Cruzadas.

A questão migratória é um debate central nas eleições norte-americanas deste ano. Segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM), a zona fronteiriça México-EUA conforma o maior corredor migratório e é a rota de migração terrestre mais letal do mundo na atualidade. Os dados oficiais mostram que a América Latina e o Caribe são as principais regiões de origem de migrantes que se dirigem aos Estados Unidos, onde estima-se que vivem cerca de 47 milhões de migrantes, incluindo pessoas em situação de refúgio.

Embora, por inúmeros motivos, as migrações tenham adquirido importância crescente nas campanhas presidenciais dos EUA, é crescente também a fabricação sistemática de desinformação para confundir e dividir a sociedade, sobretudo com o intuito de discriminar trabalhadoras/es migrantes indocumentadas/os e suas famílias.

Sobre esse aspecto da desinformação voltada para a retórica anti-imigrantes é perceptível a estratégia eleitoral fomentada publicamente por setores da mídia e de representantes políticos de construir uma falsa ideia de que migrantes seriam responsáveis pelo aumento da “criminalidade”.

O uso dessa estratégia eleitoral tem sido peça central em campanhas de partidos da extrema direita não apenas nos EUA, como também na Europa (p. ex. o partido de Le Pen na França; o partido Fratelli d’Italia que elegeu Giorgia Meloni; o partido Vox na Espanha; o partido Chega em Portugal).

Durante as convenções do partido republicano norte-americano, Donald Trump busca, reiteradamente, convencer os eleitores da falsa ideia de que a entrada de migrantes em situação indocumentada está relacionada com o aumento da violência nos grandes centros urbanos do país. Como solução, Trump e o seu partido insistem na construção de um muro “pago pelos mexicanos” e na política de tolerância zero para barrar, criminalizar e deportar milhões de migrantes.

A grande mentira do ‘migrant crime’ e os seus efeitos

No último 18 de Julho, o jornal The New York Times publicou a matéria “O mito do crime migrante”, trazendo dados e informações que demonstram a falsa associação entre aumento de imigração e crime. Segundo essa matéria, o atual candidato republicano foi quem cunhou o termo migrant crime (crime de migrante), repetido em comícios de sua campanha à Casa Branca.

A ideia de migrant crime se apoia em tese tanto inverídica quanto xenorracista, ou seja, baseia-se em uma mentira que busca construir a ideia de migrantes como “pessoas perigosas”, estratégia utilizada pelas elites no poder desde o período colonial para reprimir e retirar direitos de populações marginalizadas e racializadas não-brancas.

Estratégia similar foi empregada no início do século XX durante a ascensão nazista e fascista na Europa. A partir da propagação de mitos antissemitas, o que Adolf Hitler descreveu como “big lie” (a grande mentira), buscou-se convencer a sociedade alemã de que judeus teriam sido responsáveis pela derrota na 1ª Guerra Mundial e pela crise econômica, culminando no Holocausto que atingiu judeus, homossexuais e povos racializados não-brancos.

Apesar de ocorrerem em contextos históricos diferentes, existem paralelos importantes sobre como os grupos da extrema direita operam a desinformação em massa, ontem e hoje. Inclusive, minutos antes do ataque na Pensilvânia ocorrido em 13 de Junho, ​​Trump, que já havia acusado imigrantes de “envenenarem o sangue do país”, proferia o discurso de ódio anti-imigrantes.

Não se trata, porém, apenas de discurso para mobilizar os supremacistas brancos e os chamados nativistas. No plano ideológico, a proposta de governo aprovada pela campanha republicana defende a “maior deportação em massa da história dos EUA”: até 20 milhões de pessoas não documentadas a partir de 2025, o que seria feito com a ajuda das Forças Armadas.

Os efeitos desses discursos de ódio e políticas já são bastante conhecidos e documentados. Além de rotas mortíferas, resultam em prisões arbitrárias em massa – incluindo de crianças separadas de suas famílias – recordes de desaparecimentos e mortes nas fronteiras (em especial a travessia do Darién, no Panamá, em direção aos EUA), torturas, estupros, principalmente de mulheres e crianças, e ainda desencadeiam novas rotas de aliciamento para o trabalho escravo, o tráfico de pessoas, práticas cujos alvos são prioritariamente as mulheres e os grupos sociais estigmatizados e mais marcados racialmente, negros e indígenas.

As migrações como bode expiatório nas disputas eleitorais dos EUA

A fabricação de mentiras que colocam as migrações como bode expiatório das mazelas sociais visa deturpar o fato de que a força de trabalho migrante nos EUA contribui decisivamente para o crescimento da economia, especialmente em setores como agricultura, construção, saúde, tecnologia e serviços.

Entre as populações migrantes que arriscam as suas vidas em busca de melhores condições socioeconômicas nos EUA – provenientes não apenas da América Latina e Caribe como também de países da Ásia, Oriente Médio e África – é cada vez mais frequente a presença de mulheres e crianças. O recente filme documentário “Lo que se queda en el camino”, premiado internacionalmente, é um registro impactante da presença massiva de mulheres e crianças nas chamadas “Caravanas Migrantes”.

Para aqueles que conseguem ingressar no país pelo circuito indocumentado, o destino é a absorção nos postos de trabalho mais precarizados (aqueles que os nativos não querem fazer), altamente lucrativos para os empregadores e para o Estado já que trata-se de um trabalho “sem nenhum direito”.

Embora representem uma parcela fundamental da economia, não possuem o direito ao voto, e o Estado norte-americano investe cada vez mais na militarização e na externalização das fronteiras, dificultando a regularização migratória e até mesmo a solicitação de refúgio. Ao mesmo tempo, forças políticas impulsionam a desinformação e o discurso de ódio anti-imigrantes que têm o potencial de causar danos catastróficos para a sociedade, como testemunhamos em eventos críticos da história e aconteceu recentemente no Reino Unido.

Neste contexto, as mídias e os grupos políticos que defendem a democracia desempenham um papel vital no combate à desinformação e na qualificação do debate sobre questões sociais e políticas, especialmente as relacionadas às causas estruturais das migrações, guerras e desigualdades que impulsionam a maioria dos deslocamentos – causas nas quais a política norte-americana tem uma responsabilidade significativa. Enquanto a migração continua a ser injustamente culpada pelas mazelas sociais, o aprofundamento do debate migratório na atual disputa eleitoral dos EUA, agora com Kamala Harris como figura central, será crucial não apenas para os migrantes, mas também para as disputas geopolíticas em torno das fronteiras e das mobilidades globais.