Ata Encontro ProMigra -Fronteiras Cruzadas: Portaria 666

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA ATENTA CONTRA DIREITOS CONSTITUCIONAIS

PORTARIA DE DEPORTAÇÃO SUMÁRIA É DEBATIDA NA USP

Às 19h20, do 1º de agosto de 2019, na Sala João Monteiro (2o andar do prédio antigo) na Faculdade de Direito da USP – Largo São Francisco, aconteceu o primeiro encontro Fortalecimento de Redes: Portaria de deportação sumária viola direitos constitucionais, com o objetivo de discutir e aprofundar o debate em torno à Portaria n° 666, de 25 de julho de 2019, emitida pelo Ministério de Justiça e Segurança Pública.

Além de estudantes, advogados e pesquisadores, estiveram presentes organizações de direitos humanos como ITTC, Pastoral Carcerária, Missão Paz, Adus, Cáritas, Sefras-Centro de Acolhida Imigrantes, União Social dos Imigrantes Haitianos (USIH) e grupos de pesquisa como Colabor-USP, CEMI-Unicamp, Grupo Veredas.

O evento começou com as boas-vindas aos participantes e breve apresentação dos grupos que convocaram o encontro. Pelo PROMIGRA – Projeto de Promoção dos Direitos de Migrantes, falou Zenaida Lauda Rodriguez. Pelo Fórum Internacional Fronteiras Cruzadas, falaram Karina Quintanilha e Thiago Rangel Cortes. 

À continuação, foi dada a palavra à professora Vera Telles (FFLCH-USP), que contextualizou a violência como forma de governo estampada na Portaria 666. Apontou que dispositivos de violência – predação, perseguição, confinamento, expulsões  – estão presentes em uma longa história, conformam a matriz das colonizações e se desdobram na atualidade. No entanto, nunca foram tematizados como forma de governo. Mas é disso que se trata. Está no coração dos dispositivos de gestão das populações “indesejadas” que, hoje, se desenvolvem sob a lógica bélica do que vem sendo chamado de “guerra urbana” no contexto definido por alguns analistas como “economia política da barbárie”. 

Neste cenário, é importante prestar atenção aos modos operatórios desses dispositivos de controle e exclusão. De um lado, formas de vigilância e rastreamento dos percursos e movimentos de indivíduos e grupos sociais e pelos quais vai-se construindo as “evidências” de comportamentos suspeitos e os perfis das ditas populações “perigosas” – não por terem cometido algum crime (tipificação jurídica, código penal), mas pela ameaça provável à ordem social. Está ai o sentido dessa inefável categoria de “indivíduo perigoso” que consta da Portaria – efetivamente é uma categoria que circula, hoje em dia, nas políticas de segurança urbana em vários países, do Norte e do Sul. Por outro lado, sob a aparente normalidade dos protocolos e rituais do estado de direito, vão sendo tomadas medidas administrativas (via normativas, portarias), aparentemente “menores”, para-legais ou extra-legais e que, na prática, terminam por cercear movimentos, em particular das populações migrantes, obstando acesso a direitos e recursos urbanos de vida, de trabalho, de moradia, colocando-os ao mesmo tempo sob vigilância constante e controles administrativos, de modo que por qualquer razão ou circunstância, podem ser acusados de comportamento suspeito e infração legal. São cenários de endurecimento das políticas de segurança sob a lógica da chamada gestão de riscos associados a essas populações. 

De um lado e de outro, trata-se da erosão do Estado de Direito, sob a égide do que Achille Mbembe chama de “políticas da inimizade” – definidoras dos colonialismos históricos, que se reatualizam e que hoje se instalam também no coração dos países do Norte, fazendo erodir as regulações democráticas da convivência política. Sob a égide das obsessões securitárias e da lógica bélica e militarizada de gestão das populações indesejáveis, vai se difundindo e generalizando a fantasia da separação e do extermínio, projetando “um mundo que se desembaraça” dos muçulmanos, dos negros, dos migrantes, dos estrangeiros, dos refugiados e mais todos os deserdados e náufragos das tormentas mundiais.

Outro aspecto a ser levado em conta: essa Portaria parece ser reveladora de uma geopolítica, cujas configurações será preciso entender: seus termos, suas definições, as categorias nela contida não são apenas fruto do pensamento persecutório-policial que hoje prima do Ministério da (in)Justiça – os bastidores desta Portaria, eis algo importante a ser deslindado, pois muito provavelmente temos aí o registro de acordos/convenções voltados ao controle das migrações e deslocamentos nas fronteiras dos países. 

Mesmo que essa Portaria seja alterada em alguns de seus pontos mais polêmicos, temos que tomá-la como evidência de tendências e orientações que vieram para ficar. É isso que temos que levar em conta e que coloca que nós a urgência de formas de articulação, de ação, resistência e oposição, nesse cenário de precarização, despossessão e criminalização.

À continuação, tivemos a participação de João Chaves, da Defensoria Pública da União (DPU), que começou falando sobre a atuação da DPU na prestação de atenção gratuita à população em geral, incluídos os migrantes. O defensor fez uma ponderação sobre o conteúdo da portaria, indicando que é fundamental ter indignação do seu conteúdo e assumir uma postura crítica sobre ele. Ele percebe esta portaria como um indicativo de uma perspectiva de mudança que não é apenas local, mas sim global. Contudo, é importante evitar gerar pânico e a difusão de boatos, uma vez que a discussão desta portaria envolve pessoas, o que pode vir a afetá-las de forma negativa ao gerar um ambiente de medo e alarme. Para isso é fundamental a difusão de informação adequada e o debate qualificado para entender o instrumento em discussão. Entre os aspectos centrais da portaria, João chama a atenção para a estrutura (pirâmide) normativa brasileira sobre migração, que contempla, em primeira ordem, a Constituição Federal de 1988 e, abaixo dela, as leis, decretos e portarias, estas últimas como normas inferiores que tem por objetivo complementar as leis. A compreensão desta estrutura ajuda-nos a entender o impacto da portaria em discussão. 

Nesse contexto, embora a portaria seja, em termos normativos, pequena ou inferior, ela representa uma mudança de perspectiva na forma como é vista a migração. Ao menos até a vigência do Estatuto do Estrangeiro, a migração no Brasil era tratada como uma questão de ameaça à segurança nacional, e como tal, devia ser restringida, sempre que possível. Assim, o migrante devia ser controlado, tutelado e observado. Com a Nova Lei de Migração de 2017, a migração está pautada no “paradigma dos direitos humanos”. Entretanto, o conteúdo desta portaria vai contra este paradigma, pois coloca o tratamento da migração como questão geopolítica, na busca da internacionalização do “paradigma de segurança”. João afirmou que, apesar das legislações serem regulamentadas pelos Estados de acordo com o Pacto das Migrações, isso deve ser feito em forma ordenada e com respeito aos direitos humanos, o que a portaria não estaria cumprindo. 

Para entender melhor a inconstitucionalidade da Portaria 666 é necessário se atentar às figuras relativas à saída compulsória de migrantes previstas por lei. O Brasil tem as figuras da extradição (que implica uma solicitação entre Estados), a repatriação (que acontece na chegada do migrante à fronteira por não ter os documentos requeridos), a deportação (que implica a saída compulsória do território nacional de pessoas que estejam em situação migratória irregular) e a expulsão (que implica a saída compulsória do país de migrante que tenha sido condenado por um crime no Brasil). Na portaria, fala-se de deportação sumária, mas não seria exatamente isso porque ela prevê a possibilidade de expulsão, mesmo se o migrante estiver regular em território nacional, sob a justificativa de “suspeita de envolvimento”. 

A portaria também é nociva ao trazer a ideia indeterminada de periculosidade (“pessoa perigosa”). De igual forma, ela equipara a condição de uma pessoa que cometeu crime com uma que é suspeita, violando o direito de presunção de inocência. Outro aspecto a mencionar é o fato de que a portaria apresenta como fonte de suspeita: informações de inteligência obtidas por cooperação internacional. Isto poderia dar lugar a investigações dirigidas com fins políticos, cujas fontes não poderiam ser verificadas por se tratarem de informação de agências de inteligência. Outra questão afrontada pela portaria é o princípio do devido processo penal, uma vez que não existe um procedimento específico para esta deportação e poderia ser iniciado por qualquer pessoa. Caso o processo de deportação seja iniciado, a defesa só terá 48 horas para juntar seus meios de prova e um prazo de 24h para recurso de impugnação, um prazo impossível para efetiva defesa. Cabe ressaltar que a prisão para fins de deportação ou expulsão não está prevista na lei, mas a portaria cria essa possibilidade, apesar de que, em ocasião anterior, a DPU entrou com ações de habeas corpus denunciando a ilegalidade desta prisão, o que foi confirmado pelo STF. Finalmente, João refere que não seria possível uma deportação em massa, pois não se tem orçamento para isso. O risco real seria mais a médio e longo prazo. O possível uso político, simbólico desta portaria, sobretudo num contexto de mudança geopolítica na América do Sul, a exemplo da criminalização da migração na Argentina por um Decreto do presidente Macri. Corremos o risco de entrar no mapa migratório numa narrativa de securitização e criminalização, o que pode ser muito negativo. Face a este cenário, faz-se necessário criar espaços de diálogo e pesquisa sobre direito migratório a fim de alcançar uma discussão madura sobre o tema.

À continuação tivemos as falas das sul-africanas Nduduzo e Precious. Ambas falaram sobre o impacto que causou nelas a publicação da portaria e compartilharam um pouco sobre suas experiências como migrantes, sobretudo, após cumprirem pena por “mula” do tráfico internacional na penitenciária feminina da capital (SP) e se deparando com uma realidade na qual o desconhecimento das leis, dificuldades com a linguagem, a falta de documentação e barreiras no acesso ao mercado de trabalho colocam as migrantes em situação de extrema vulnerabilidade. Nduduzo destacou a importância da Campanha #NduduzoTemVoz em solidariedade contra a sua expulsão do Brasil. Elas temem que a emissão da portaria possa vir a prejudicá-las, num momento na qual elas vêm refazendo suas vidas e encontrando novas oportunidades para ter uma vida digna no Brasil.

Após essas falas foi sugerido criar uma agenda ou encaminhar comissões de trabalho que tivessem como objetivo manter uma rede de apoio, informação e atuação frente aos possíveis desdobramentos da portaria. Esta agenda poderia ser acompanhada e executada em futuras reuniões ou novos encontros com participação dos grupos presentes e outros interessados, o que poderia ser encaminhado dentro da organização do próprio Fórum Fronteiras Cruzadas. Após uma série de ideias expostas foram propostas as seguintes ações:

  • Construção de redes de resistência e apoio para migrantes;
  • Ações de advocacy, pesquisa e organização de eventos futuros abordando a temática da criminalização de migrantes;
  • Monitoramento do desenvolvimento da política internacional, considerando o contexto e as agendas com os quais o Brasil se compromete (por que a UE apoia uma política de acolhimento do Brasil com os migrantes venezuelanos?);
  • Aprofundar as discussões sobre o que implicaria o termo “terrorismo” (não se tem uma definição fechada a respeito, mas sim, indicadores a serem avaliados pelo Estado);
  • Possibilidade de solicitar um inquérito civil (forma de tutela coletiva) para solicitar uma investigação sobre como foi elaborada a portaria;
  • Ocupações para visibilizar a pauta, assim como materiais de divulgação sobre a portaria com informação certa e confiável;
  • Organização de frentes de acompanhamento e divulgação da portaria em espaços ocupados por comunidades migrantes. Para isso será necessário um mapeamento das comunidades migrantes;
  • Possibilidade de criar um fórum permanente que atue em diversos espaços;
  • Articulação com grupos ou organizações que trabalham com comunidades migrantes em outras frentes de assistência social ou de saúde (intervenção especial do grupo Veredas);
  • Realização de saraus culturais com debates; 
  • Eventos para levar informação jurídica e psicológica em forma articulada;
  • Mapeamento de movimentos de resistência internacional e campanhas de combate à criminalização de migrantes.
  • Busca de fomentos à atividade científica e artística, com a possibilidade de aporte da pós-Graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp;
  • Utilização das ferramentas do site fontieforum.org e da publicação acadêmica Fontié ki Kwaze – Fronteiras Cruzadas (fontieforum.org/revistafontie/).

Após a proposta e intercâmbio de ideias, os participantes se comprometeram a manter contato com o Fórum a fim de dar encaminhamento às ações propostas, com a possibilidade de organizar um III Forum Internacional Fronteiras Cruzadas.

Foi sugerida uma nova reunião em dia de final de semana pra facilitar a participação de migrantes. Surgiu a proposta do encontro acontecer na Faculdade de Direito da USP e, após os encaminhamentos, seguir em cortejo/sarau para o Centro de Acolhida da Bela Vista com a participação de artistas imigrantes. 

Próximo encontro no dia 7 de Setembro, a confirmar pela página do @FontieForum e @ProMigra no Facebook.

Sendo às 22h20, a reunião foi concluída. 

Levantamento de referências e leituras recomendadas:

  • Notas e manifestos sobre a Portaria 666/2019

https://www.conjur.com.br/dl/portaria-mj-viola-direitos-leis-propria.pdf

http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/pfdc-recomenda-a-ministerio-da-justica-revogacao-de-portaria-que-trata-do-impedimento-de-ingresso-e-deportacao-sumaria-de-migrantes-e-refugiados?fbclid=IwAR2gf3ENTI0SvOaTYk_dB9M_nhAz8hRAm_jAK401Jhjz4ywjhiYo1gC

https://www.conectas.org/noticias/contra-lei-moro-cria-deportacao-sumaria?fbclid=IwAR3ABPnAhg2srKdeeZujuMtMefTzrhmcrkoykadoqu8GSlSC6wrRBooSWRY

http://fronteirascruzadas.com.br/2019/07/30/ministerio-da-justica-atenta-contra-direitos-constitucionais-portaria-666-e-debatida-na-usp/
  • Projetos de lei que ameaçam direitos 

https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/132149

  • Notícias da mídia

https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/07/entenda-o-que-e-e-quais-as-polemicas-da-portaria-de-moro-sobre-deportacao.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/07/organizacoes-de-defesa-de-imigrantes-criticam-portaria-de-moro-e-dizem-que-norma-contraria-lei.shtml

https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/31/mp-vai-investigar-se-ha-ilegalidade-em-portaria-que-preve-deportacao-sumaria-de-estrangeiros-suspeitos.ghtml

https://theintercept.com/2019/08/19/paraguaios-moro-bolsonaro/

  • Internacional

https://www.dw.com/en/the-brazilian-justice-ministers-dubious-deportation-decree/a-49816025?maca=en-EMail-sharing

  • Leituras

https://diplomatique.org.br/a-violencia-como-forma-de-governo/

https://www.conjur.com.br/2019-ago-07/karina-quintanilha-notas-historicas-pessoa-perigosa

https://epoca.globo.com/artigo-contra-lei-de-migracao-governo-oferece-canetada-o-jabuti-23882403

https://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/medidas-nao-afetam-greenwald-mas-representam-retrocesso/

https://www.unicamp.br/unicamp/ju/633/tese-revela-configuracao-polarizada-da-mao-de-obra-imigrante

Imagem em destaque: Vídeo-instalação do artista Henry Daniel “Nômades contemporâneos” na Universidade de Ottawa.