Fronteiras Cruzadas estreita laços com acadêmicos e militantes italianos em São Paulo: o professor renomado Sandro Mezzadra e sua comitiva realizam circuito histórico-político nos bairros da Sé, Liberdade e Glicério

No dia 9 de setembro deste ano, membros do coletivo Fronteiras Cruzadas estreitaram o intercâmbio e as trocas com o pesquisador italiano Sandro Mezzadra e sua equipe, em uma caminhada pelo centro histórico de São Paulo. Com o intuito de expandir as alianças e parcerias acadêmicas e de militância dentro e fora do país, articulou-se com o estudioso sobre fronteiras e migração um passeio sobre a história da cidade de São Paulo, destacando-se as espacialidades da Sé, Liberdade e Glicério e relacionando-as com as lutas contemporâneas. Variados assuntos foram debatidos na caminhada que buscou apresentar os territórios do centro, em que se pontuou a história da escravidão, frisando suas marcas na cidade e as respectivas iniciativas de resistência. O objetivo era partilhar as linhas de conflito entre a produção do espaço urbano no passado e no presente. Tratava-se de pensar o modo como a cidade se produziu, rememorando ações de barbárie e opressão, de um lado, e resistências e mobilizações, de outro. O ponto era evidenciar o caleidoscópio de diferentes populações que compõe os territórios do centro, os respectivos processos de apagamento das histórias frente a prevalência de uma história oficial. Por fim, a caminhada se encerrou com uma proveitosa visita e diálogo com Fedo Bacourt, pesquisador colaborador do projeto de extensão e diretor da União Social dos Imigrantes Haitianos.

Sandro Mezzadra é um renomado acadêmico italiano, professor de Teoria Política na Universidade de Bolonha, cujas pesquisas se concentram em temas de migração, fronteiras, globalização, colonialismo, e capitalismo contemporâneo. Seus estudos são influenciados pelo pensamento marxista e pós-colonial. Ele é particularmente conhecido por seu trabalho sobre a “política das fronteiras” e os efeitos da globalização no movimento de pessoas. Sua vinda ao Brasil foi mobilizada pela professora de sociologia da UFABC Livia de Tommasi. Alessandro Peregalli, professor de história da Universidade Federal dos Vales de Jequitinhonha e Mucuri e Niccolò Cupini, do coletivo Into the black box (coletivo de pesquisa sobre logística, espaço e trabalho) completaram a equipe de pesquisadores internacionais que participou da caminhada. Também esteve presente Lindomar de Albuquerque, professor de sociologia da UNIFESP e parceiro do Fronteiras Cruzadas. Lindomar coordena o grupo de pesquisa Liminar (Laboratório de Investigação em Migração, Nação e Região de Fronteira).

O recorrido iniciou-se no marco zero da cidade, na Praça da Sé, em que se debateu as lutas na ditadura e a importância da igreja católica, em especial a teologia da libertação. Seguiu-se posteriormente em direção à Praça da Liberdade, passando anteriormente no atual respiro do metrô na Praça João Mendes, onde se localizava o pelourinho da cidade de São Paulo. Uma pequena placa azul da prefeitura municipal, quase diminuta e que passa desapercebida por todos que frequentam o espaço, indica que ali se situava o tronco de tortura que ficava na porta de entrada da cidade. Alguns metros adiante, chega-se à atual praça da Liberdade, conhecida anteriormente como Praça da Forca, em referência ao equipamento público da era colonial escravocrata que se erguia sobre aquele espaço. Debateu -se com os pesquisadores o apagamento da memória escravocrata e negra na cidade de São Paulo. O atual bairro da liberdade, antes de ser lido como territorialidade de presença marcante de japoneses, coreanos e chineses, é um território de longa história da presença negra e indígena. Os equipamentos de tortura, a Igreja Santa Cruz das Almas dos Enforcados e a Capela Nossa Senhora dos Aflitos, todos na região e conectados às lutas antirracistas, tem sua presença invisibilizada na cidade. A história oficial recente busca reiterar o bairro da Liberdade como uma espacialidade de predomínio japonês, não à toa a estação do metrô foi rebatizada para o nome “Japão-Liberdade”, apagando-se tanto a história das lutas dos escravizados, como também a presença múltipla de chineses e coreanos, que também ocupam o bairro. As autoridades públicas reconstroem uma nova identidade para um território com múltiplos significados e histórias, não permitindo ou acolhendo as concomitâncias de presenças, mas subjugando-as e apagando-as.

A Capela Nossa Senhora dos Aflitos é símbolo importante da história negra do centro de São Paulo.  Ela foi construída em 1779 e é até hoje um espaço de adoração a Chaguinhas, o Francisco José das Chagas. Chaguinhas estava enterrado no Cemitério dos Aflitos, ao qual a Capela fazia parte. Hoje o cemitério dos negros e indígenas enforcados foi tomado por construções variadas, restando apenas a Capela de resquício da época. Chaguinhas foi um personagem histórico conhecido por sua execução trágica, que marcou o contexto de injustiças sociais e raciais no Brasil do século XIX. Era um sargento negro nascido em Salvador, Bahia, por volta de 1770, que se envolveu em um movimento de soldados, principalmente negros, que protestavam contra os baixos salários e as péssimas condições de vida, em um episódio chamado “Revolta dos Defensores”, que ocorreu em São Paulo e Santos, em 1821. Após a revolta ser sufocada, Chaguinhas foi condenado à morte por enforcamento. Sua execução, no entanto, ficou marcada por eventos dramáticos: a corda utilizada para o enforcamento quebrou várias vezes. Esse fato fez com que o povo acreditasse que aquilo era um sinal divino de que ele não deveria ser morto. Mesmo assim, os oficiais insistiram em continuar com a execução, e após várias tentativas, Chaguinhas foi finalmente morto. Ele passou a ser visto como uma figura de resistência, e sua história foi associada às lutas contra a opressão e ao racismo.

Após apresentação da história de Chaguinhas, da Forca, da Igreja Santa Cruz das Almas dos Enforcados, caminhou-se conjuntamente em direção ao bairro do Glicério, descendo a rua dos Estudantes, que parte da praça da Liberdade em direção ao rio Tamanduateí. No caminho, lembrou-se que o nome desta rua se deveu ao fato de ela concentrar repúblicas e moradias estudantis na época do Brasil colônia e Império. A Faculdade do Largo do São Francisco ficava nos arredores e ali moravam estudantes em moradias coletivas. Ao sair da Liberdade em direção ao Glicério, notava-se pouco a pouco uma mudança na ocupação das ruas. Se na Liberdade havia um fluxo elevado de pessoas e comércios orientais; no Glicério notava-se a presença intensa de pessoas negras, migrantes e refugiados da África e do Haiti que moram no bairro. A caminhada chegou finalmente à USIH (União Social dos Imigrantes Haitianos).

Na USIH, Fedo Bacourt, também do Fronteiras Cruzadas, esperava a comitiva para contar um pouco da história da entidade. A USIH é uma organização sem fins lucrativos que visa apoiar a comunidade haitiana no Brasil. Sua missão principal é defender os direitos humanos e sociais desses imigrantes, promover a inclusão social e lutar contra a discriminação e xenofobia. A USIH atua em diversas frentes, como: apoio jurídico; inserção social, com cursos de língua portuguesa, facilitando o acesso ao mercado de trabalho e promovendo atividades culturais; além de apoio psicológico e assistencial, em parceria com outras organizações. Além disso, a USIH colabora com entidades governamentais e organizações internacionais para garantir os direitos dos imigrantes e combater a exclusão social. A associação desempenha um papel crucial na promoção do diálogo entre a comunidade haitiana e as instituições brasileiras.

Na conversa entre os haitianos e a comitiva italiana, desatacavam-se questões relacionadas à história da luta do Haiti, em especial a Revolução Haitiana, um grande marco para todos os povos escravizados. Essa discussão era sempre relacionada às marcas atuais do modelo capitalista e colonizador que segue oprimindo a nação haitiana.

O professor Lindomar Albuquerque destacou que o passeio pelo centro foi muito interessante por apresentar uma história que de modo geral costuma ser invisibilizada, de como a Liberdade vem negra é tão pouco difundida. Albuquerque ainda destacou a potência de construir linhas interpretativas que partem “da análise desse passado escravocrata brasileiro, marcado nos equipamentos da cidade, e chegam na USIH, que acompanhava as lutas sobre jovem haitiano preso”. Nesse caso, Albuquerque se refere à mobilização que a USIH, o Fronteiras Cruzadas e a rede Vidas Imigrantes Negras importam estão travando pela liberdade de Sainglerge Clergé, um trabalhador haitiano que foi preso após defender uma ambulante que apanhava da Polícia Militar em operação na região do Brás. A ambulante haitiana negra que recebeu uma grande pancada em sua cabeça estava na USIH na ocasião, ela buscava apoio na mobilização para a libertação do compatriota.

O professor Sandro Mezzadra agradeceu pelo passeio realizado no centro da cidade. Destacou que tinha ido, enquanto turista, para o bairro da Liberdade e que sua percepção ficou basicamente marcada pela presença da migração japonesa. No entanto, após a visita com a equipe do Fronteiras Cruzadas, ele conseguiu entender a presença negra e as marcas da escravidão na produção da cidade. Ele diz que o recorrido pelo centro “permitiu que eu abrisse minha perspectiva em relação a história da negra, da escravidão e da migração não apenas em relação ao bairro da Liberdade, mas no Brasil de modo geral, algo que pretendo aprofundar em minhas compreensões”. Além disso, ele destacou que a visita à USIH é uma experiência peculiar e interessante, ele que já esteve presente em muitas associações de migrantes organizadas a partir do caráter nacional, mas que ele vê nesses casos uma mistura de lógica de ONG e uma lógica diplomática. Mas, no encontro no Glicério ele notou uma realidade distinta, em que ele percebia uma realidade mais politizada e militante. Em especial, destacou “quando nosso amigo, Fedo, respondeu minha pergunta sobre a existência de uma política diaspórica na comunidade haitiana em São Paulo. Fedo tomou essa pergunta para pensar a possibilidade do desenvolvimento de uma política diaspórica com efeitos políticos e práticos para o Haiti, isso me chamou muito a atenção.”. Ainda, Mezzadra destacou a importância do trabalho realizado pela radio comunitária haitiana, que puderam conhecer na ocasião.

O Fronteiras Cruzadas cooperou na organização do evento “Extrativismo, logística e financeirização: as fronteiras do capital desde o Sul global”, realizado no dia 10 de setembro na FFLCH-USP. O Professor Sandro Mezzadra participou da mesa “Operações do capital, transformações do capitalismo e redefinição dos conflitos geopolíticos”, que contou com comentários da Professora da FAU Raquel Rolnik e mediação da coordenadora do projeto de extensão, profa. Vera da Silva Telles. No período da tarde, Hernán Cuevas (Universidad Austral del Chile) e Niccolò Cuppini (Into the black box) debateram a “Logística e seus entraves: infraestruturas, territórios e trabalho”. A atividade do dia se encerrou com homenagem realizado pelos professores Jean Tible (FFLCH/USP) e Sandro Mezzadra (UNIBO) ao mestre Toni Negri.

Roda de conversa projeto de extensão: Fronteiras Cruzadas

Ocorreu no dia 16 de setembro a roda de conversa do projeto Fronteiras Cruzadas, um encontro  especial dos bolsistas e pesquisadores colaboradores do projeto, como a Associação de Mulheres Imigrantes Luz e Vida (AMILV), da União Social dos Imigrantes Haitianos (USIH)  com a comunidade acadêmica da Universidade de São Paulo. 

O encontro realizado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da USP, foi um espaço importante de troca e articulação com os estudantes de graduação,  pós-graduação e professoras ali presentes, Bruna Gisi, coordenadora do curso de Ciências Sociais da FFLCH, e Paula Marcelino, do departamento de Sociologia. A atividade iniciou com uma performance artística de Juan Cusicanki  (do Centro Cultural Andino Amazônico e do grupo Kollasuyu Maya), e teve quitutes preparados por Hortense Mbuyi, advogada congolesa e mestranda na FFLCH-USP, fundadora do Espaço Wema de gastronomia e cultura africana, ambos pesquisadores colaborativos do projeto.

Os participantes também aproveitaram a oportunidade para refletir sobre a luta por justiça para Evans, que faleceu há um mês da data do encontro. Na ocasião, foi reforçada a importância de seguir defendendo o direito de migrar e de solicitar refúgio no Brasil e no mundo.

Vem aí: Mesacast Fontié Ki Kwaze – Fronteiras Cruzadas

O projeto de extensão Fronteiras Cruzadas está realizando a gravação de mesacasts com o objetivo de criar um espaço de diálogo interdisciplinar, reunindo pesquisadores, ativistas pelo direito das pessoas migrantes e os membros do projeto de extensão, para discutir temas relacionados às migrações, resistências culturais, política migratória e a redes sociotécnicas.

A proposta é amplificar vozes diversas e promover debates que conectem as experiências dos migrantes com questões sociais e políticas, buscando o engajamento público e a conscientização sobre direitos humanos e a mobilidade transnacional, considerando seus aspectos políticos e culturais.

Até o momento, seguimos nas gravações e dois episódios já foram gravados contando com quatro pessoas já entrevistadas, estamos ansiosos para compartilhar o resultado desse trabalho com vocês!

#JUSTIÇAPOREVANS Após 1 mês da morte de migrante de Gana, família segue na luta por justiça e reparação 

Evans Osei Wusu, de 39 anos, fazia parte do grupo que estava detido arbitrariamente no Aeroporto Internacional de SP, em Guarulhos, à espera de refúgio. Ele morreu em decorrência de uma infecção urinária seguida de uma infecção generalizada e enfrentou dificuldades para conseguir atendimento básico de saúde.

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A grande mentira do “crime migrante” nas eleições norte-americanas

Fonte original disponível no Latinoamérica21

Autora Karina Quintanilha – Advogada especializada em migração e refúgio, doutora em Sociologia pela UNICAMP e bolsista Print-Capes pela Università Ca’Foscari di Venezia (Itália). É pesquisadora colaboradora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e cofundadora do Fórum Internacional Fronteiras Cruzadas.

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