Carta aberta da Campanha #RegularizaçãoJá sobre a crise humanitária na fronteira Brasil-Peru
O cenário é desolador: desde março de 2020, o governo federal publicou cerca de 30 Portarias a fim de fechar as fronteiras terrestres e impedir o trânsito entre os países, “Considerando a necessidade de dar efetividade às medidas de saúde para resposta à pandemia da SARS-CoV-2 (Covid-19)”. A despeito de a fundamentação aparente ser impedir a circulação de pessoas para conter a proliferação do vírus, com o passar do tempo restou claro que o fechamento de fronteiras não só é inócuo e ineficaz, como é seletivo e esconde uma intenção ideológica do governo.
Como consequência da Portaria (a última até o momento é a nº 652 de 25 de janeiro de 2021), a militarização das fronteiras foi exacerbada para impedir a entrada no país. Além desse acionar discricionário no que diz respeito a circulação nas fronteiras, outro foco de ataque ao direito a migrar que observamos é o aumento dos obstáculos para pessoas migrantes buscarem a regularização da sua situação migratória, gerando uma grande fila para conseguir atendimento na Polícia Federal (PF), e um número alarmante de indocumentados, bem maior do que geralmente visto no Brasil. Tratam-se de mais barreiras físicas impostas pelo governo, com a intenção de desestimular que as pessoas busquem a sua regularização, através da imposição de trâmites burocráticos intermináveis e com decisões discricionárias.
Caso paradigmático para retratar os impactos causados pela Portaria é que, durante mais de uma semana, cerca de 400 imigrantes estão acampados nas proximidades da Ponte da Integração, divisa entre o Brasil e o Peru, para tentar retornar ao país de origem ou a outros países em busca de trabalho. O ápice dessa crise ocorreu no último 16 de fevereiro, quando os imigrantes passaram pela barreira imposta pelo governo do Peru e, sob tiros de alerta disparados para cima e lançamento de gás lacrimogênio, entraram na pequena cidade peruana de Iñapari, sendo detidos nas ruas. Em resposta, o governo brasileiro autorizou o emprego da Força Nacional de Segurança Pública nesta fronteira, primeiramente para impedir a entrada, e no dia 22 de fevereiro alteraram a normativa para impedir a saída de imigrantes – medida totalmente ilógica e desarrazoada. Tal medida também demonstra que o Brasil e o Peru se inserem em uma lógica mais ampla de perpetuação das mobilidades forçadas, tática amplamente usada por países europeus e pelos EUA de conter os fluxos migratórios antes que eles efetivamente cheguem às suas fronteiras, terceirizando o trabalho de repressão para Estados-satélites.
Essa atuação não está somente em flagrante conflito com a Lei de Migração (13.445/2017), mas contradiz as mais importantes apreciações sobre matéria em âmbito internacional como a Resolução 1/2020, a comunicação n. 77/2020 ambos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos; assim como a Nota de orientação conjunta do Comitê para a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de suas Famílias das Nações Unidas e Relator Especial sobre os direitos humanos dos migrantes da ONU publicado no dia 26 de maio de 2020.
A militarização das fronteiras evidencia uma política de governo pautada pela violência, em uma lógica de intolerância e falta de inclusão. As Portarias publicadas pelo governo são claras: fechamento das fronteiras terrestres, por onde entram pessoas que tem poucos recursos e que mais necessitam de integração e políticas públicas de auxílio, enquanto as fronteiras aéreas estiveram abertas o tempo todo, e a fronteira com o Paraguai é a única terrestre que está aberta – por evidentes intenções comerciais. As Portarias também estabelecem um tratamento diferenciado e discriminatório dado às pessoas da Venezuela, vetando expressamente o ingresso das pessoas vindas daquele país, independentemente do seu status migratório ou condição de vínculo com brasileiros/as. Essa é uma medida contraditória com o posicionamento assumido pelo próprio governo de que há uma situação de grave e generalizada violação de direitos humanos que perpassa o país. A imposição dessas restrições, tão seletivas na sua aplicação, é resultado de um uso da política migratória para fins ideológicos, que pouco tem a ver com a política de contenção da pandemia. Ao invés de estabelecer medidas de prevenção e acolhimento nos pontos de chegada nas fronteiras, o governo brasileiro optou por medidas drásticas, impondo restrições e ameaças às pessoas que necessitam de proteção internacional.
Nesse sentido, a própria Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) informou que nunca orientou o Ministério da Justiça a proibir a entrada de pessoas venezuelanas no país. Inicialmente, o Ministério afirmou que a restrição à entrada no Brasil estaria embasada em “recomendação técnica e fundamentada da Anvisa”, mas, quando questionada, a Anvisa alegou que as restrições não constam em nenhum documento do órgão para subsidiar essas decisões do governo. Essa segregação de países apenas confirma o caráter xenofóbico, racista e seletivo das medidas adotadas pelo governo federal brasileiro, sob a falsa premissa de conter a pandemia, já que medidas discriminatórias estão na agenda do governo desde antes da crise sanitária – exemplo claro é a portaria 666 de 2019, que previa a deportação sumária de pessoas “perigosas para a segurança do Brasil”. Com isso, os dados são estarrecedores: segundo levantamento da GloboNews, 2.901 pessoas foram deportadas no Brasil em 2020, o que representa um aumento de 5.708% em comparação com 2019. As deportações imediatas de pessoas, bem como a retenção do fluxo migratório nas cidades fronteiriças, tratam-se da violação direta ao princípio da não criminalização da migração, sem respeitar os procedimentos legais existentes. Na prática, estão proibindo a entrada no Brasil e as formas de regularização migratória prevista em lei,
incluindo o direito a solicitar refúgio (violando a lei 9.474/1997). Ainda, está ocorrendo na prática deportações coletivas, o que é expressamente vedado pela Lei de Migração
As restrições impostas pelo Governo promovem o medo, a xenofobia e a violência, bem como aumentaram a vulnerabilidade das pessoas em situação de mobilidade, por entrarem através de caminhos alternativos e perigosos, conhecidos como “trochas”, e onde há a presença de coiotes. Como consequência, ao longo deste último ano aumentou a fila de imigrantes em situação migratória irregular, que não conseguiram a regularização migratória nos termos da lei de migração e pelo estatuto do refugiado, estando sujeitos constantemente à ilegal deportação prevista pela Portaria, além de não terem acesso à serviços públicos de saúde e assistência social, direitos previstos na Constituição Federal, na Lei de Migração e em Tratados Internacionais, independentemente de situação migratória.
Milhares de imigrantes que chegaram ao Brasil durante esse período não conseguiram nenhum tipo de auxílio por não terem regularizado a sua situação. Desde antes da pandemia, já haviam inúmeros obstáculos para se buscar a regularização, como excessos de burocracias, seletividade nos atendimentos, cobranças indevidas e altos custos dos procedimentos, falta de informação por parte dos agentes do atendimento, dentre outras. Após o início do período pandêmico, e com as medidas de distanciamento e consequente suspensão/paralisação dos serviços, restou quase impossível conseguir agendamento perante a PF, órgão responsável pela emissão de documentos migratórios no Brasil, de modo que a fila de passivos aumentou exponencialmente. Cada vez mais, a população migrante que busca atendimento nas organizações da sociedade civil está com a situação documental bastante vulnerável.
Assim, um grande contingente de imigrantes no Brasil está sem respostas e sem perspectivas de conseguir se regularizar, o que gera inúmeras barreiras de acesso aos serviços essenciais. Embora os prazos de vencimento dos documentos tenham sido prorrogados, há inúmeras preocupações por parte da sociedade civil e dos coletivos de migrantes, pois o governo tem agido de modo arbitrário e sem transparência. Um impacto direto relacionado à essa dificuldade na regularização é a dificuldade de acesso ao Auxílio Emergencial, medida urgente para lidar com as desigualdades agravadas pela pandemia, já que a muitos migrantes lhes é vedado o benefício pelo seu status migratório – a despeito do que rege a Lei de Migração que toda pessoa migrante, independentemente de sua situação migratória, tem direito à assistência social.
Além do Auxílio Emergencial, inúmeras outras barreiras estão sendo enfrentadas pelas populações migrantes, dentre elas: (i) obstáculos para a inscrição no Cadastro de Pessoa Física (CPF) por discricionariedades burocráticas impostas pela Receita Federal; (ii) atos xenofóbicos por parte de funcionários de bancos, que exigem a regularidade migratória para a abertura de contas e para sacar o auxílio; (iii) exigência que o procedimento seja feito virtualmente, sendo que muitos imigrantes não possuem acesso à dispositivos móveis ou acesso à internet. A xenofobia e o racismo estruturais estão por trás dessas medidas arbitrárias e discricionárias, violando a Constituição, a Lei de Migração e diversos tratados. A situação de irregularidade migratória e a indocumentação tem produzido outras violações
sistemáticas a direitos humanos de imigrantes durante a pandemia, tais como a intensificação de despejos arbitrários, o que gera o deslocamento para moradias precárias e o aumento da quantidade de imigrantes em situação de rua.
Mais do que nunca, é urgente que ocorra a flexibilização das exigências documentais, especialmente neste cenário de pandemia. Dada a urgência da crise humanitária que estamos inseridos, é preciso que o governo adote medidas de regularização imediata para a população migrante e refugiada que se encontra sem nenhum amparo, vivendo nas ruas e recebendo ameaças diárias de deportação. A política de indocumentação gera – e reforça – a discriminação e exclusão social. Mesmo que o acesso amplo e adequado ao Sistema de Saúde e às políticas de Assistência Social no Brasil estejam garantidos na Constituição Federal e nas leis para imigrantes independentemente da regularização dos seus documentos, muitas vezes essas populações têm dificuldades para conseguir atendimento por medo de denúncias, maus tratos, desconhecimento das leis por parte dos migrantes e até dos próprios funcionários públicos. Nessa esteira, a situação migratória irregular é um obstáculo para o exercício de direitos garantidos pela legislação brasileira para imigrantes e refugiados, aumentando a vulnerabilidade dessa população no contexto da atual pandemia.
Portanto, a irregularidade migratória gera ainda mais discriminação e de exclusão social, e tem se convertido em um dos grandes fatores de ameaça à efetividade das políticas públicas no combate ao Coronavírus, na medida em que mantêm uma parcela significativa da população imigrante e refugiada invisível às ações e planejamento do Estado. No mundo inteiro e no Brasil, a política de indocumentação expõe as pessoas migrantes a múltiplas condições de vulnerabilidade, que dificultam o acesso aos direitos, como trabalho e moradia dignos. A flexibilização das exigências documentais e a consequente regularização migratória permitirá maior conhecimento e o atendimento adequado das pessoas migrantes que possam estar com sintomas de COVID-19. Considerando o rápido contágio que caracteriza esse vírus, isso significa cuidar da saúde não apenas das pessoas migrantes em situação irregular, mas de toda a população do país.
Ao mesmo tempo, a regularização migratória permite o acesso mais amplo de imigrantes às políticas de Assistência Social, bem como possibilita o maior acesso a alguns serviços necessários durante a quarentena (ajuda emergencial, abertura de conta bancária, serviços de entrega e delivery, trâmites com o exterior, continuidade em postos de trabalho, dentre outros). Manifestações de xenofobia, racismo e violência tem se intensificado durante o período da pandemia, além de discursos e políticas que criminalizam as migrações e inviabilizam a plena efetivação de direitos. A regularização é um importante e necessário passo na luta contra as mais variadas formas de discriminação, sendo fundamental para a proteção e promoção dos direitos da população migrante e refugiada no Brasil.
Nesse sentido, viemos a público denunciar as políticas anti-direitos do governo Bolsonaro, pautadas na violência, militarização e omissão no auxílio humanitário. Solicitamos que sejam considerados os inúmeros apelos por parte da sociedade civil e da Defensoria Pública da União e outros órgãos públicos, além de organismos internacionais, para que a Portaria de fechamento de fronteiras (sendo a última até o momento a de nº 652, de 25 de janeiro de 2021) seja REVOGADA, ou que pelo menos seja revista para se adequar aos parâmetros exigidos pela Constituição, pela Lei de Migração, e pelas normas do Direito Internacional. Como último acontecimento emblemático, chamamos atenção para a crise que está ocorrendo no Acre, onde migrantes estão na Ponte da Integração à própria sorte, contando com poucas organizações e movimentos sociais. Exigimos, assim, que as esferas municipal, estadual e federal, bem como organismos internacionais, forneçam o apoio necessário na garantia dos direitos fundamentais dos imigrantes presentes em Assis Brasil e regiões próximas, impedindo que sejam deportados injustamente. Apelamos para que organismos internacionais estejam in loco para impedir atos violentos e arbitrários contra essas populações vulneráveis.
Paralelamente, requer-se que o governo se posicione para regularizar de maneira imediata, irrestrita e incondicionada as pessoas impedidas por inúmeros obstáculos institucionais, legais e ideológicos, em um cenário de colapso social e de saúde que afeta diretamente essas pessoas que se encontram em situação administrativa irregular no Brasil.
Por fim, esperamos que a audiência temática sobre a situação dos direitos humanos de migrantes e refugiados no contexto da pandemia de COVID-19 na América do Sul, a ser realizada no próximo dia 25 de março, durante o 179º período de sessões da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, seja uma oportunidade para denunciar essas situações graves e ilegais, que violam as obrigações internacionais dos Estados no âmbito da mobilidade humana, não só no Brasil como em um contexto regional mais amplo.
Plataforma da Campanha “Regularização Já”
05 de março de 2021
Assinam esta nota:
Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil
Católicas pelo Direito de Decidir
Centro da Mulher Imigrante e Refugiada (CEMIR)
Centro Dandara de Promotoras Legais Populares
Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC)
Centro dos Direitos Humanos Maria da Graça Bráz de Joinville (CDHMGB)
Cio da Terra – Coletivo de Mulheres Migrantes
Coletivo Diásporas Africanas
Coletivo Educar para o Mundo (EpM)
Coletivo Magdas Migram – RJ
Coletivo Popular Direito a Cidade – CPDC, Porto Velho, Rondônia
Comitê Migrações e Deslocamentos, Associação Brasileira de Antropologia
Conectas Direitos Humanos
Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil – CONIC
Conselho Nacional de Ouvidorias de Defensorias Públicas
Coordenadoria Ecumênica de Serviço – CESE
Eliad Dias dos Santos- Teóloga
Equipe de Base Warmis-Convergência das Culturas
Fórum Internacional Fontié Ki Kwaze – Fronteiras Cruzadas
Fundação Luterana de Diaconia – Conselho de Missão entre os Povos Indígenas – Centro de Apoio e Promoção da Agroecologia (FLD-COMIN-CAPA)
Ivone Gebara – Teóloga
Movimento Nacional de Direitos Humanos – MNDH Brasil
Palanque Migrante
Pacto pelo Direito de Migrar – PDMIG (África do Coração)
Rede Cristã de Advocacia Popular (RECAP)
Rede de Mulheres Imigrantes Lésbicas, Bissexuais e Pansexuais (Rede MILBi)
Rede Jubileu Sul Brasil
Rede Sem Fronteiras (RSF)
Valdirene A. De Oliveira – Ouvidoria Geral Externa da Defensoria Pública do Estado de Rondônia
Visão Mundial